Caso Clínico
Surdez súbita e paralisia facial periférica
após infeção por SARS-CoV-2
Sudden hearing loss and facial paralysis
after SARS-CoV-2 infecction
Gustavo Pedrosa Rocha1, Nuno O’neill Mendes1, Mafalda Trindade Soares1, Marco Menezes Peres1, Filipe Freire1, Rui Manaças2
Gustavo Pedrosa Rocha1,
Nuno O’neill Mendes1,
Mafalda Trindade Soares1,
Marco Menezes Peres1,
Filipe Freire1,
Rui Manaças²
1 Serviço de Otorrinolaringologia,
Hospital Prof.Dr. Fernando da Fonseca
2 Serviço de Neurorradiologia,
Hospital Prof.Dr. Fernando da Fonseca
Correspondência:
Gustavo Pedrosa Rocha.
Hospital Prof.Dr. Fernando da Fonseca.
Correio eletrónico: g.pedrosarocha@gmail.com
Recibido: 13/6/2021 Aceptado: 3/10/2021
ISSN:
2340-3438
Edita:
Sociedad Gallega de Otorrinolaringología
Periodicidad:
continuada.
Correo electrónico:
actaorlgallega@gmail.com
Resumo
A surdez súbita e paralisia facial periférica são duas urgências otorrinolaringológicas comumente associadas a infeções virais. Os autores apresentam um relato de paralisia facial periférica precedida por surdez súbita ipsilateral após infeção por SARS-CoV-2. Foram realizadas investigação clínica, laboratorial e imagiológica para excluir outra etiologia. A imagem de Ressonância Magnética evidencia neurite do VII e VIII pares. O SARS-CoV-2 pode ser uma causa de sinais neurológicos periféricos como primeira e única manifestação da doença e a sua suspeita e despiste pode evitar contágios, assim como dirigir a terapêutica.
Palavras chave:
SARS-CoV; surdez súbita, paralisia facial periférica
Abstract
Sudden sensorineural hearing loss and facial paralysis are two otolaryngology urgencies commonly associated with viral infections. We report a case of sudden hearing loss followed by facial palsy after SARS-CoV-2 infecction. Physical examination, laboratory and imaging were requested to exclude any other etiology. Magnetic resonance imaging indicated seventh and eighth cranial nerve neuritis. SARS-CoV-2 may be a cause of peripheral neurological signs as the first and only manifestation of the disease. Its suspicion and tracking could prevent infectious spread, as well as targeted treatment.
Keywords:
SARS-Cov-2; sudden sensorineural hearing loss, facial paralysis
Introducción
A paralisia facial periférica (PFP) e a surdez súbita (SS) são entidades clínicas cuja etiologia é muito discutida. Devido à sua relativa baixa incidência combinada, nem sempre se procura determinar a sua etiologia com exatidão, o que pode dificultar o tratamento adequado. Contudo, a causa viral é sem dúvida uma das mais suspeitadas e estudadas.
Severe acute respiratory syndrome coronavírus 2 (SARS-Cov-2), o vírus responsável pela COVID-19, identificado em Wuhan, China, em Novembro de 2019, foi declarado pandémico pela OMS em Março de 2020.1 Os sintomas mais comuns da doença incluem febre, tosse e fadiga, podendo estar presentes produção de expectoração, cefaleia, hemoptise, diarreia e dispneia.1 Anosmia e disgeusia têm sido reportados em doentes COVID-19 paucissintomáticos ou assintomáticos, o que levou a Academia Americana de Otorrinolaringologia e Cirurgia da Cabeça e Pescoço (AAO-HNS) a recomendar a inclusão destes sintomas no rastreio da infeção.2 O presente estudo teve como objectivo descrever o caso clínico de um homem de 69 anos, com SS e PFP após infeção SARS-CoV-2, com imagiologia compatível com neurite do VII e VIII pares, assim como explorar a possível relação etiológica com o vírus, com recurso a bibliografia sobre o tema.
Caso Clínico
Doente do sexo masculino, 69 anos, com antecedentes pessoais de hipertensão arterial (HTA) e diabetes mellitus tipo 2 (DM2), já seguido em consulta externa ORL desde Julho 2020 por acufenos bilaterais. Tinha realizado previamente audiometria tonal no ano anterior, que revelava limiares tonais normais até 3 kHz e hipoacusia neurossensorial bilateral simétrica de grau moderado a partir de 3 kHz (limiar tonal médio de 60 dB). (fig.1). Otoscopia e timpanometria normais.
Figura 1 - audiograma tonal prévio
Recorreu ao Serviço de Urgência de ORL por hipoacusia esquerda, de instalação súbita, sem fator desencadeante, com início 6 dias antes. Referia também agravamento de acufeno persistente e não pulsátil, ipsilateral. Negava vertigem e outros sintomas neurológicos. Refere que, dias antes da hipoacusia teve episódios de tosse, sem febre ou rinorreia. Sem história de uso de fármaco ototóxico, trauma craniano ou trauma acústico. O exame ORL foi normal. Realizada avaliação audiométrica de urgência que demonstrou hipoacusia neurossensorial moderada nas frequencias de 250 Hz até 1 kHz (50 dB) e hipoacusia neurossensorial profunda esquerda nas frequencias de 1 kHz até 8 kHz (110db). (fig.2) Curvas do timpanograma tipo A de Jerger bilateralmente.
Figura 2 - audiograma tonal surdez súbita
Cumpre critérios de SS e por isso solicitam-se exames laboratoriais, Ressonância Magnética (RM) de ouvido. Dados os seus antecedentes pessoais de HTA e DM2, não foi instituída corticoterapia oral e foi proposto para injeção de corticóide intra-timpânico (IT). Os exames serológicos para VIH, para toxoplasmose, citomegalovírus, Epstein-barr vírus, além de Sífilis e Borrelia foram negativos. Foi planeada a primeira injeção IT para dois dias após o diagnóstico. Um resultado pré-operatório de véspera positivo para SARS-CoV-2 motivou o cancelamento da injeção. O doente foi avisado telefonicamente, mantido em isolamento no domicílio. Manteve-se apirético e assintomático do ponto de vista respiratório. No dia seguinte ao resultado positivo, o doente queixa-se de assimetria facial.
Recorre ao serviço de urgência (área de respiratórios) do hospital e é diagnosticada PFP esquerda grau 3 de House-Brackmann. O restante exame neurológico foi normal. Não apresentava erupções vesiculares ou alterações cutâneas. Exames laboratoriais e Tomografia Computorizada crânio-encefálica (TC-CE) inocentes. Inicia 10 dias de corticoterapia oral – prednisolona 60mg / dia. O doente revela recuperação subjetiva da surdez, mantendo acufeno residual. Ao 37º dia de doença, após pesquisa SARS-CoV-2 negativa, o doente volta ao hospital para reavaliação. Ao exame objetivo há recuperação total da PFP. Repete audiograma tonal (fig.3) que revela recuperação parcial (segundo os critérios da AAO-HNS) com limiares de 20 dB nas frequências até 1 kHz e limiares de 45 dB, 65 dB e 70 dB nas frequências de 2, 4 e 6 kHz, respetivamente. Realiza RM de ouvido com injeção de gadolínio, a qual evidenciou uma obliteração do canal auditivo interno esquerdo por estrutura tecidular isointensa em T1 e T2, impregnando homogeneamente pelo gadolínio os nervos facial e vestibulococlear em “tramtrack”- imagem correspondene a neurite do VII e VIII pares no seu segmento intracanalicular. (Fig. 4). Apresenta-se um cronograma para mais fácil compreensão do curso clínico. (Fig.5)
Figura 3 - audiograma tonal após corticoterapia.
Figura 4 - Ressonância Magnética T1 axial (A) e coronal (B). Captação assimétrica do gadolínio dos nervos facial e vestibulococlear esquerdos no segmento intracanicular (setas). Padrão tram-tracking consistente com neurite do VII e VIII pares.
Figura 5 - cronograma de evolução clínica do doente.
Discussão
O relato do caso clínico evidenciou um doente diagnosticado com SS e PFP. Contudo, a relevância deste caso consiste na associação entre a SS, a PF e a infeção pelo SARS-CoV-2, relação que recentemente tem sido relatada na literatura científica. 3,4
Para ambas as patologias, a etiologia da maioria dos casos permanece idiopática. Contudo, a etiologia viral é sempre de considerar. Relativamente à SS, de todas as etiologias possíveis, a infeção viral é frequentemente subestimada, havendo inúmeros artigos que propõem a sua associação com herpes-vírus simples, VIH, vírus da hepatite, vírus do sarampo, vírus da rubéola, vírus da parotidite, vírus de Lassa, e enterovírus. 5
Para a PFP, os vírus mais estudados são vírus varicela zoster vírus, herpes-vírus simples tipo 1, herpesvírus humano tipo 6 e vírus Usutu. 6
O SARS-CoV-2 partilha um sequencia homógena com dois outros coronavírus humanos potencialmente letais: SARS-CoV e MERS-CoV. Ambos podem, comprovadamente, causar lesão cerebral direta em animais e humanos. Assim sendo, a possibilidade do SARS-CoV-2 poder entrar no Sistema Nervoso Central (SNC) e causar lesão neurológica não é negligenciável. Adicionalmente, ambos os coronavírus invadem as células humanas via Enzima Conversora de Angiotensina 2 (ECA2), um importante componente do sistema renina-angiotensina, presente nos diversos órgãos e tecidos. 7 A ECA2 é altamente abundante na mucosa nasal, particularmente no epitélio ciliado e células caliciformes. Adicionalmente, a maior intensidade de replicação viral parece ocorrer na cavidade nasal, sendo evidenciado pelos mais altos títulos virais encontrados no nariz. 8
A entrada do vírus pelo bulbo olfativo – a única parte do SNC não envolvida por dura-máter – é uma trajetória plausível para o SARS-CoV-2, tendo em conta a elevada ocorrência de anosmia na COVID-19. 9
Na sequência do diagnóstico de SS, dados os antecedentes pessoais do doente – HTA e DM2, contraindicações relativas para corticoterapia sistémica, optou-se pela corticoterapia intra-timpânica como terapêutica. Vários estudos têm demonstrado absorção sistémica mínima, com risco reduzido de efeitos sistémicos adversos e ainda com maiores concentrações cocleares de corticóide na perilinfa coclear. 10 Neste ponto não havia suspeita de infeção por SARS-CoV2, uma vez que o doente não apresentava queixas respiratórias nem um contacto de risco conhecido. A infeção por SARS-CoV-2 foi detetada exclusivamente como pré-requisito para iniciar protocolo de tratamento. Dada a controvérsia no uso de corticoterapia sistémica na COVID-19 por relatos iniciais sugerirem risco de aumentar a severidade da infeção e diminuir a sua depuração, a Sociedade Francesa de Otorrinolaringologia emitiu uma recomendação de que deve continuar a ser prescrita para os casos em que há eficácia comprovada, tal como nos casos de SS e PFP. 11 A decisão terapêutica envolveu o apoio da Infecciologia, que considerou o doente sem contraindicação para a terapêutica, visto que estava assintomático do ponto de vista respiratório.
A RM demonstra obliteração do CAI esquerdo e realce pelo gadolínio dos nervos facial e vestíbulo-coclear no segmento intracanalicular, sem alteração nos restantes segmentos dos feixes nervosos. Hiperintensidade de sinal de um nervo periférico na RM corresponde a uma neuropraxia (Sunderland grau 1), que se traduz num bloqueio da condução nervosa de curta duração, resultando em sintomas clínicos com recuperação espontânea e bom prognóstico.12 Após a avaliação imagiológica, foi proposto o diagnóstico hipotético de PF precedida de SS secundária a neurite do VII e VIII pares de provável etiologia viral – SARS-CoV-2.
Três diferentes mecanismos têm sido propostos para explicar como a infeção viral causa SS. Um por invasão viral direta do nervo coclear ou da cóclea. O segundo por reativação do vírus latente no ouvido interno. O terceiro mecanismo é através da activação do sistema imunitário no contexto de uma infeção viral sistémica, que gera um anticorpo capaz de reagir com um antigénio do ouvido interno por reação cruzada, causando uma ativação patológica de vias de stress celular na cóclea. 5
Relativamente ao caso clínico em questão, o mecanismo mais provável terá sido a invasão viral direta, quer do nervo vestíbulo-coclear, quer da porção contígua do nervo facial, uma vez que se consegue identificar sinais de neurite e a ausência de sinais de labirintite na RM. O mecanismo imunológico, por reação cruzada ou stress celular, pode ter contribuído para a neurite, embora o doente não apresentasse sintomas ou indícios laboratoriais de infeção sistémica.
Foram aventadas outras hipóteses diagnósticas para esta apresentação clínica. A ausência de lesões dermatológicas e auriculares tornam a infeção por herpes vírus improvável.
Outras causas infeciosas e imunológicas foram excluídas por análise serológica e por ausência de envolvimento sistémico. Neoplasia e doenças cerebrovasculares foram excluídas por TC-CE e RM, assim como pela ausência de outros défices neurológicos. É prudente considerar que a associação do quadro com a infeção SARS-CoV-2 pode ser puramente circunstancial.
Este relato de caso clínico sugere a possível associação entre a infeção SARS-CoV-2 e a SS e PFP, e funciona também como alerta para a possibilidade de manifestações não respiratórias da infeção por SARS-CoV-2. Desta forma podemos identificar infeções antes não suspeitas, evitando a propagação do vírus e direcionar eficazmente a terapêutica. Contudo, mais informação epidemiológica é necessária para confirmar a relação causal. Com a rápida expansão da pandemia, aumentarão o número de manifestações neurológicas relacionadas e poder-se-á compreender melhor a sua história natural, o seu tratamento e prognóstico.
Declaração de conflites de intereses:
Declara-se que não existem conflitos de interesses na realização deste trabalho.
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